Jornal Médico - Desculpem, mas eu li!: A Rainha da Sucata…

Uma hist&oacute;ria com nome pode ser real, sem deixar de ser ficcionada. Ou ser uma fic&ccedil;&atilde;o inspirada ou decalcante da realidade&hellip; O que no caso desta cr&oacute;nica nem interessa Uma hist&oacute;ria com nome pode ser real, sem deixar de ser ficcionada. Ou ser uma fic&ccedil;&atilde;o inspirada ou decalcante da realidade&hellip; O que no caso desta cr&oacute;nica nem interessa, sendo certo que, aos cl&iacute;nicos, desde que haja tempo e disposi&ccedil;&atilde;o, sobram motivos para contar o que, em outro contexto, deu origem &agrave; publica&ccedil;&atilde;o dos livros de contos m&eacute;dicos &ldquo;O Lado Humano da Medicina&rdquo;. N&atilde;o se poder&aacute; assim confirmar se esta hist&oacute;ria a contar, deriva dum caso patol&oacute;gico ou de uma autenticidade obtusa, enquanto que, por outro lado, deve ser limitada &agrave; pequenez da personagem, do contexto e do assunto. Decerto teremos, de norte a sul, do litoral ao interior, indiv&iacute;duos que, como nesta cr&oacute;nica, parecem nem identificar ou aperceber os estragos que provocam &agrave; sua passagem, elegante e cuidada, bem ao jeito de elefante caminhando sobre um morangal! Claro que, na vida, nem tudo &eacute; sempre branco ou negro, mas pode ser tudo uma quest&atilde;o de mentalidade, afinal de uma mentalidade que seja o reflexo da micro-sociedade em que se insere, ou o resultado do contacto e da experi&ecirc;ncia com realidades ou cen&aacute;rios mais abrangentes e din&acirc;micos. A fronteira de cada um de n&oacute;s para o sofrimento pode come&ccedil;ar logo a seguir &agrave; pr&oacute;xima esquina da exist&ecirc;ncia breve, com certeza. Mas n&atilde;o ser&aacute; normal que esse sofrimento tolde o comportamento de modo cont&iacute;nuo e permanente em personalidades que n&atilde;o conhecem nem o branco, nem o cor-de-rosa, nem o sorriso, nem a alegria&hellip; &Eacute; por isso que este pequeno conto, sobre a Rainha da Sucata, pretende, acima de tudo, ser uma ilus&atilde;o. Uma ilus&atilde;o a prop&oacute;sito de como alguns seres, aparentemente, conseguem condicionar ou deformar a percep&ccedil;&atilde;o da realidade e de anularem as suas pr&oacute;prias desmioladas emo&ccedil;&otilde;es&hellip; A Rainha da Sucata! Qualquer monarca deve ser conhecido pelo seu cognome. Basta recordar a Hist&oacute;ria e evocar &ldquo;O Lavrador&rdquo; ou o &ldquo;Rei Sol&rdquo;, por exemplo&hellip; Aqui n&atilde;o se trata de um rei ou de um rainha, a s&eacute;rio sequer, nem de um qualquer outro nobre, no sentido etimol&oacute;gico, mas de algu&eacute;m que, no seu papel comum, banal e relevante como o de todos n&oacute;s, &agrave; sua escala e medida, vale o que vale, mas se julga melhor! Nada de novo, nem de original&hellip; Por todo o lado h&aacute; disto, gente vulgar com a mania de que tutelam outros ou lhe exprimem superioridade moral ou &eacute;tica e outras virtudes ou jur&aacute;ssicos ou recentes. Tamb&eacute;m a Rainha da Sucata era uma dessas figuras sui generis capazes de ser a maior entre os seus, os da sua rua, da sua freguesia ou empresa! Esquecendo ou iludindo os problemas iguais aos de todos os cidad&atilde;os, simples mortais e pouco ambiciosos: as mesmas doen&ccedil;as, os mesmos tiques, os mesmos anseios, os mesmos medos! Vendia a imagem que podia, vendendo o que tinha e n&atilde;o tinha. Apanhava de vez em quando, em jeito de aranha na teia, algum papalvo ou lorpa que, por distrac&ccedil;&atilde;o ou necessidade, lhe ca&iacute;a na m&atilde;o, dele sacando tudo at&eacute; &agrave; alma e organizando uma informa&ccedil;&atilde;o para o dominar e controlar de modo eterno. Ai de quem lhe n&atilde;o aprouvesse! Ele ou ela, novo ou velho, qualquer que fosse o seu credo, clube ou partido, estava condenado ao mais cruel dos calv&aacute;rios: o da sua boca, f&eacute;rtil em maledic&ecirc;ncia e cal&uacute;nia&hellip; Houve j&aacute; tempos em que os autos de f&eacute; queimavam os infi&eacute;is&hellip; Continuam com a Rainha da Sucata a arder, de modo mais civilizado, mas n&atilde;o menos covarde, nem miser&aacute;vel! Crendices, bruxedos, supersti&ccedil;&otilde;es s&atilde;o instrumentos que mant&ecirc;m lugar numa estrat&eacute;gia de tentativa de manipula&ccedil;&atilde;o e de altera&ccedil;&otilde;es dos destinos. A acuidade visual perdida com a idade, entre outros factores a considerar, dava-lhe conforto no seu pr&oacute;prio reino, impedindo-a de ver o que se passava junto de si mesma. Indiferen&ccedil;a, rotina, infelicidade, necessidade, drama, esfor&ccedil;o ou solid&atilde;o, alternavam como em toda a parte, com os seus contr&aacute;rios. Embora aqui, estas mar&eacute;s s&oacute; fossem not&oacute;rias nas fases &ldquo;cheias&rdquo;&hellip; Apregoar felicidade pode, raras vezes, soar a autentico. Mas por norma &eacute; propaganda. Difundir ou tentar promover a infelicidade &eacute;, em regra, patol&oacute;gico, ultrapassando a imbecilidade, a inger&ecirc;ncia ou a intromiss&atilde;o na privacidade de outrem. Pode at&eacute;, no limite, ser ileg&iacute;timo e criminoso. Chamavam-lhe Rainha por outra raz&atilde;o. Porque havendo no reino quem a conhecesse bem melhor e antes do que eu, porque havendo na na&ccedil;&atilde;o quem lhe tivesse sentido as unhas ou os dentes, parece que a tudo e a todos ela sobrevivera&hellip; Decerto seria obra do diabo, porque aos crist&atilde;os n&atilde;o parecia poss&iacute;vel que algu&eacute;m, assim mau, pudesse em liberdade gozar com tais gratuitas agressividade e falsidade. Admitiam mesmo que, n&atilde;o fosse ela a Rainha, a esperaria, porventura, um internamento hospitalar compulsivo, mas tamb&eacute;m Nero, na Velha Roma, a muito sobreviveu&hellip; Os m&eacute;ritos nunca devem ser escamoteados e a soberana era uma mestra nas artes da lisonja, da hipocrisia, da descaradez e da cal&uacute;nia. Em boa verdade, outros m&eacute;ritos haveria a destacar, mas de momento, n&atilde;o me ocorrem e os seus s&uacute;bditos, quando pensavam nisso, desistiam para n&atilde;o perder mais tempo&hellip; Lembro-me, isso sim, de amigos e amigas que, com a Rainha da Sucata, de uma ou de outra forma, se cruzaram ou lidaram. Ao ponto de lhe revelarem, como outros, pormenores das suas vidas pessoais e &iacute;ntimas ou familiares, numa longa escorregadela. Pagaram obviamente as facturas que s&atilde;o debitadas a quem por inc&uacute;ria, teimosia ou inoc&ecirc;ncia, acredita na face e olhos fingidos da diab&oacute;lica Rainha. Vivia feliz com a ideia de esmagar toda a gente&hellip; Os anos foram passando e a corte, pacificamente, tudo gramava, assistindo serenamente &agrave; substitui&ccedil;&atilde;o de modas e de nobres, em movimentos de renova&ccedil;&atilde;o c&iacute;clicas e indispens&aacute;veis &agrave; evolu&ccedil;&atilde;o das sociedades. A Rainha continuava convictamente isolada e ostracizada, sem amigos, nem amizades, mas segura das suas armas. Mudaram-se os reis verdadeiros, os cardeais e os bispos, os alcaides e os cruzados, mas a Rainha a tudo sobreviveu. Vista da Lua, depois da Muralha da China, acreditava que s&oacute; ela poderia ser observada&hellip; Como a todos os humanos, pelo menos aos que assim nasceram, o fim est&aacute; prometido e &eacute; igual ao de todos os seres vivos. No caso dela, como diria o outro, abram-lhe a cova bem redonda: tem a forma de um zero. O problema ficar&aacute; para o futuro. Quem for &agrave; Lua e de l&aacute; vir a Terra, h&aacute;-de vislumbr&aacute;-la como um bolo-rei: - Sem brinde, com fava e com buraco! Rui Cernadas Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.

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