Jornal Médico - Ser MF é ser médico pessoal e familiar, solidário… ou até da solidão

Realizou-se, a 14 de Maio &uacute;ltimo, o semin&aacute;rio "Ser m&eacute;dico e ser m&eacute;dico de fam&iacute;lia", organizado pela disciplina de Cl&iacute;nica Geral/Medicina Geral e Familiar da Faculdade de Medicina de Coimbra Realizou-se, a 14 de Maio &uacute;ltimo, o semin&aacute;rio "Ser m&eacute;dico e ser m&eacute;dico de fam&iacute;lia", organizado pela disciplina de Cl&iacute;nica Geral/Medicina Geral e Familiar da Faculdade de Medicina de Coimbra. O evento teve a participa&ccedil;&atilde;o activa de dezenas de alunos - empenhados, com m&uacute;ltiplas quest&otilde;es e opini&otilde;es. A coordena&ccedil;&atilde;o da iniciativa, que contou com o apoio da Administra&ccedil;&atilde;o Regional de Sa&uacute;de do Centro e Associa&ccedil;&atilde;o Nacional dos Estudantes de Medicina, esteve a cargo do assistente Humberto Vitorino, no &acirc;mbito dos projectos do ano lectivo 2008/2009, idealizados por Hern&acirc;ni Cani&ccedil;o e aprovados pelo corpo docente da disciplina regida por Armando Carvalho Logo na abertura do semin&aacute;rio "Ser m&eacute;dico e ser m&eacute;dico de fam&iacute;lia", Armando Carvalho apontou o ensino da Medicina Geral e Familiar (MGF) na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC) como inovador, dada a sua vertente pr&aacute;tica e as iniciativas p&uacute;blicas desenvolvidas ao longo do ano. Factores motivadores para os alunos, dos quais 30% ser&atilde;o obrigatoriamente m&eacute;dicos de fam&iacute;lia (MF), devendo s&ecirc;-lo por gosto. O mesmo respons&aacute;vel referiu que, sem boa MGF, n&atilde;o h&aacute; servi&ccedil;o de sa&uacute;de com qualidade aceit&aacute;vel, destacando o apoio incondicional da ARS Centro ao bom desempenho da disciplina acad&eacute;mica. J&aacute; Joaquim Gomes da Silva, em representa&ccedil;&atilde;o da Administra&ccedil;&atilde;o Regional de Sa&uacute;de do Centro (ARS Centro), considerou que o MF &eacute; o elemento mais importante na sa&uacute;de das popula&ccedil;&otilde;es, fazendo parte dos seus atributos a solidariedade, a proximidade e a compet&ecirc;ncia t&eacute;cnica. Ao ser generoso e gerir a ansiedade das fam&iacute;lias, contribui para ganhos em sa&uacute;de. Afirmou, ainda, n&atilde;o haver lugar para o trabalho isolado, pelo que se torna necess&aacute;rio investir nos novos modelos de organiza&ccedil;&atilde;o de cuidados. Especialista no ser humano O professor e presidente da Sec&ccedil;&atilde;o Regional do Centro da Ordem dos M&eacute;dicos (OM), Jos&eacute; Manuel Silva, abordou em Coimbra a tem&aacute;tica "Ser m&eacute;dico em Portugal". Lamentou, antes de mais, o facto de o programa da iniciativa n&atilde;o contemplar como conferencista um aluno, que pudesse dizer o que significa, para si, ser m&eacute;dico. Algo que, ali&aacute;s, veio a acontecer durante o debate subsequente, gra&ccedil;as a v&aacute;rias interven&ccedil;&otilde;es. "Ser m&eacute;dico &eacute; ser humano", disse Jos&eacute; Manuel Silva. Acrescentou ainda que "o m&eacute;dico existe para servir os doentes e n&atilde;o para se servir deles, havendo m&eacute;dicos que tratam os doentes de forma intoler&aacute;vel e a quem apetece dar um par de chapadas". Ficou a t&oacute;nica de que "gostar de rela&ccedil;&otilde;es humanas e de as estudar - ter esp&iacute;rito de sacrif&iacute;cio e ser uma pessoa sens&iacute;vel - s&atilde;o requisitos para se ser m&eacute;dico". O internista dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) frisou que muita da Medicina que hoje se faz "privilegia a ligeireza, o imediato e a imagem (pedido de exames, RX, ecografia, TAC, resson&acirc;ncia, positr&otilde;es, etc.), havendo por outro lado press&otilde;es economicistas sobre os m&eacute;dicos". Jos&eacute; Manuel Silva considera que o m&eacute;dico "necessita ainda de ter cuidados na rela&ccedil;&atilde;o com a ind&uacute;stria farmac&ecirc;utica". Quanto ao Servi&ccedil;o Nacional de Sa&uacute;de, salientou que se deveria apostar na qualidade: "quando as pessoas se concentram nos custos, ent&atilde;o estes tendem a aumentar e a qualidade diminui com o curso do tempo", disse, citando William Deming. O dirigente da OM reservou ainda algum tempo para dissecar v&aacute;rios problemas que afectam a classe. Por exemplo, o burnout que amea&ccedil;a os profissionais, a aguardada proletariza&ccedil;&atilde;o e desemprego m&eacute;dico (em Portugal, o n&uacute;mero de m&eacute;dicos ir&aacute; duplicar, no espa&ccedil;o de 30 anos) e as deficientes condi&ccedil;&otilde;es de trabalho ou os riscos que envolvem as carreiras m&eacute;dicas. Neste cen&aacute;rio em transforma&ccedil;&atilde;o, Jos&eacute; Manuel Silva entende que a OM "deve ter um papel auto-regulador - n&atilde;o corporativo - e n&atilde;o se pode desculpar com a pr&aacute;tica m&eacute;dica ou com o sistema". Concluiu com a no&ccedil;&atilde;o de que o associativismo m&eacute;dico &eacute; a &uacute;nica esperan&ccedil;a para um futuro melhor, mas que &eacute; importante dizer n&atilde;o &agrave; guerra de classes. Vantagens da especialidade V&iacute;tor Ramos, em confer&ecirc;ncia sobre "Ser m&eacute;dico de fam&iacute;lia em Portugal", fez uma resenha hist&oacute;rica - desde o saudoso relat&oacute;rio inicial sobre as carreiras m&eacute;dicas, em 1961 at&eacute; &agrave; cria&ccedil;&atilde;o dos centros de sa&uacute;de ditos de primeira gera&ccedil;&atilde;o em 1971, pelos Professores Gon&ccedil;alves Ferreira e Arnaldo Sampaio, era ministro Baltazar Rebelo de Sousa... Terminado com a actual reforma dos CSP. O cl&iacute;nico da USF Marginal esclareceu que se encontra na fase mais gratificante de uma carreira de 30 anos e que o MF se depara, actualmente, com dez vantagens para cada inconveniente. Assim, s&atilde;o vantagens a promo&ccedil;&atilde;o e manuten&ccedil;&atilde;o da sa&uacute;de entre as pessoas e as fam&iacute;lias (da&iacute; quem defenda que a MGF passe a chamar-se Medicina Pessoal e Familiar), a detec&ccedil;&atilde;o precoce de doen&ccedil;as graves, o esclarecimento sobre o significado e gravidade dos sintomas, o diagn&oacute;stico e tratamento das doen&ccedil;as mais frequentes, a preven&ccedil;&atilde;o relativamente ao acto de medicalizar problemas psicossociais, a abordagem a m&uacute;ltiplos problemas na mesma pessoa, a orienta&ccedil;&atilde;o do recurso a outras especialidades, meios e servi&ccedil;os, a promo&ccedil;&atilde;o da acessibilidade aos cuidados no domic&iacute;lio, a garantia de continuidade de cuidados e o apoio (&agrave; pessoa e &agrave; fam&iacute;lia) em fase final da vida. Ciente de que a MGF &eacute; uma especialidade de elei&ccedil;&atilde;o, V&iacute;tor Ramos terminou a sua confer&ecirc;ncia com duas cita&ccedil;&otilde;es lapidares. A primeira de Manuela Grazina - professora da FMUC -, que sobre o m&eacute;dico disse: "espantoso &eacute; quando funciona; n&atilde;o quando deixa de funcionar". A segunda tirada, bem conhecida, pertence a William Mayo: "a finalidade do m&eacute;dico &eacute; tornar-se desnecess&aacute;rio". Jovem m&eacute;dica de fam&iacute;lia interroga-se sobre solid&atilde;o Ap&oacute;s as duas confer&ecirc;ncias inaugurais, iniciou-se ent&atilde;o a mesa-redonda relacionada com o Exerc&iacute;cio da MGF no Mundo. Esta sess&atilde;o foi moderada (com emo&ccedil;&atilde;o) por Humberto Vitorino, algu&eacute;m sempre motivado para o exerc&iacute;cio e solidariedade. Importante, tamb&eacute;m, o contributo de N&aacute;dia Moreira, rec&eacute;m-especialista em MGF que retratou a pr&aacute;tica da MGF em Portugal. A jovem especialista ironizou sobre os coment&aacute;rios de alguns colegas relativamente &agrave; MGF, que v&ecirc;em esta especialidade como "menor". Ao apontar a defini&ccedil;&atilde;o europeia da MGF de 2005, destacou m&uacute;ltiplas &aacute;reas de interven&ccedil;&atilde;o do MF em todas as vertentes do corpo humano, o grande n&uacute;mero de oportunidades, a abordagem hol&iacute;stica, a possibilidade de resolver 70% a 90% das necessidades em sa&uacute;de dos seus doentes e a aus&ecirc;ncia dos limites do conhecimento. Todavia, parte substancial da sua interven&ccedil;&atilde;o foi dedicada &agrave; descri&ccedil;&atilde;o de um dia de trabalho, na vida do MF. Assim, para N&aacute;dia Moreira, uma qualquer segunda-feira poder&aacute; integrar variadas consultas, algumas com grupos de risco e vulner&aacute;veis, o atendimento complementar, domic&iacute;lios, a emerg&ecirc;ncia, a articula&ccedil;&atilde;o do problema individual com o "estado" da fam&iacute;lia, os sistemas de informa&ccedil;&atilde;o, a consulta de oportunidade, a realiza&ccedil;&atilde;o de rastreios, a actua&ccedil;&atilde;o orientada para a pessoa global, a utiliza&ccedil;&atilde;o dos m&eacute;todos de avalia&ccedil;&atilde;o familiar, a renova&ccedil;&atilde;o do receitu&aacute;rio e a transcri&ccedil;&atilde;o de EAD, sem esquecer a coopera&ccedil;&atilde;o com outros n&iacute;veis de presta&ccedil;&atilde;o de cuidados. Acrescem, ainda, &aacute;reas como a educa&ccedil;&atilde;o para a sa&uacute;de, a forma&ccedil;&atilde;o profissional cont&iacute;nua, a condu&ccedil;&atilde;o de programas e projectos de investiga&ccedil;&atilde;o. A energia do MF e a sua dimens&atilde;o Ant&oacute;nio Rodrigues, m&eacute;dico e gestor de contratualiza&ccedil;&atilde;o, apresentou &agrave; audi&ecirc;ncia nove pa&iacute;ses da Europa em que o MF exerce as fun&ccedil;&otilde;es de "gatekeeping". Explicou, em contraposi&ccedil;&atilde;o, o que se passa em dez outras na&ccedil;&otilde;es onde esta responsabilidade n&atilde;o lhe pertence. Outra compara&ccedil;&atilde;o trazida &agrave; li&ccedil;a foi a que separa os pa&iacute;ses onde existem listas fixas de utentes, atribu&iacute;das a um MF, e aqueles onde n&atilde;o se verifica esta realidade. Assim, o m&eacute;dico de fam&iacute;lia enumerou seis pa&iacute;ses onde essas listas foram adoptadas, doze em que se prescindiu das mesmas e um exemplo nacional em que se recorre a listas apenas para os cidad&atilde;os de baixo rendimento. Refira-se, como exemplo, que na Su&eacute;cia uma lista m&eacute;dia de utentes engloba 2.870 inscritos, por compara&ccedil;&atilde;o com 588 utentes na B&eacute;lgica (dados de 2003). Em Portugal, tal valor estava estimado em 1.476 utentes e no Reino Unido numa m&eacute;dia de 1.892 pessoas. No que respeita ao exerc&iacute;cio liberal da Medicina Familiar, a situa&ccedil;&atilde;o &eacute; tamb&eacute;m muito vari&aacute;vel no Velho Continente. Este representa 100% do universo de MF na Dinamarca e na Alemanha e 99% no Reino Unido, Su&iacute;&ccedil;a e &Aacute;ustria. No p&oacute;lo oposto, est&atilde;o pa&iacute;ses como a Turquia (3% dos m&eacute;dicos exercem exclusivamente em regime liberal), Finl&acirc;ndia (apenas 2%), Portugal e Su&eacute;cia (com somente 1% da classe nestas condi&ccedil;&otilde;es). Ap&oacute;s realizar uma an&aacute;lise de v&aacute;rios factores que envolvem o exerc&iacute;cio da profiss&atilde;o, em in&uacute;meros pa&iacute;ses europeus, Ant&oacute;nio Rodrigues sublinhou que existem fen&oacute;menos que exigem hoje uma particular aten&ccedil;&atilde;o, apontando como preocupa&ccedil;&atilde;o s&eacute;ria o "over care". Especialidade m&eacute;dica com futuro... primazia ao cidad&atilde;o No debate final deste evento, v&aacute;rios alunos pediram esclarecimentos sobre a caracteriza&ccedil;&atilde;o das unidades de sa&uacute;de familiar, cabendo a Joaquim Gomes da Silva dimensionar a reforma em curso. J&aacute; Armando Carvalho retomou a mais-valia da MGF, tra&ccedil;ando quadro comparativo e interface com a especialidade de Medicina Interna em que &eacute; graduado. Abordou tamb&eacute;m a postura das outras especialidades m&eacute;dicas face &agrave; MGF (nem sempre exemplar). Por outro lado, Hern&acirc;ni Cani&ccedil;o referenciou os objectivos do semin&aacute;rio e o interesse da vis&atilde;o biopsicosocial da MGF. Tentou, em paralelo, motivar os alunos para a escolha futura da especialidade. Lembrou que est&aacute; em curso um question&aacute;rio que coordena, dirigido aos cerca de 500 alunos da FMUC, do 5&ordm; e 6&ordm; ano do curso m&eacute;dico, preenchido antes e ap&oacute;s lecciona&ccedil;&atilde;o da disciplina. Este question&aacute;rio, conclu&iacute;do no final do ano lectivo, relaciona-se com as raz&otilde;es da escolha da especialidade m&eacute;dica e grau de conhecimento sobre a MGF. Nele encontram-se v&aacute;rias op&ccedil;&otilde;es de resposta, focadas em conceitos e pr&eacute;-conceitos como medicina de proximidade, medicina solid&aacute;ria, esfor&ccedil;o acrescido, burocracia excessiva, raz&otilde;es salariais, falta de prest&iacute;gio, entre outros. Considerou que a (boa) rela&ccedil;&atilde;o m&eacute;dico/doente &eacute; chave para o exerc&iacute;cio e identifica&ccedil;&atilde;o profissional do m&eacute;dico, sendo a (boa) comunica&ccedil;&atilde;o em sa&uacute;de chave para o MF. Humberto Vitorino, al&eacute;m da coordena&ccedil;&atilde;o da sess&atilde;o, respondeu a quest&otilde;es pr&aacute;ticas sobre o exerc&iacute;cio da medicina solid&aacute;ria e a pr&aacute;tica do voluntariado, enquanto forma&ccedil;&atilde;o m&eacute;dica e desempenho profissional atraente e consolador. Citou, inclusive, a institui&ccedil;&atilde;o Sa&uacute;de em Portugu&ecirc;s - na qual est&aacute; envolvido - como exemplo de organiza&ccedil;&atilde;o em que a solidariedade n&atilde;o &eacute; palavra v&atilde;. Texto: Hern&acirc;ni Cani&ccedil;o (Assistente Convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra) e redac&ccedil;&atilde;o JMF Fotos: Humberto Vitorino (Assistente da Disciplina de CG/MGF da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra)

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