Jornal Médico - Novas guidelines da ESC para a abordagem à doença cardiovascular em pessoas com diabetes

O Congresso da Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC 2023) foi palco da apresentação das “2023 ESC Guidelines for the management of cardiovascular disease in patients with diabetes”, desenhadas com o intuito de “orientar a prevenção e o manejo das manifestações de doença cardiovascular em pessoas com diabetes”. O atual documento distingue-se do anterior, publicado em 2019, desde logo por não contemplar a pré-diabetes pela falta de evidência clara. “Durante décadas, o tratamento das doenças cardiovasculares (DCV) em doentes com diabetes significava que precisávamos de reduzir a pressão arterial e tratar para controlar porque não tínhamos outras opções para reduzir o risco cardiovascular (CV). Isto mudou em 2015, quando os primeiros ensaios clínicos de outcomes cardiovasculares (CVOT) dos novos fármacos redutores de glucose, os inibidores SGLT2 e os agonistas dos recetores GLP-1, foram publicados e esses resultados mudaram o paradigma já nas guidelines de 2019”. Foi desta forma que o Prof. Doutor Nikolaus Marx, coordenador e primeiro autor do documento1 desenvolvido pela Task Force on the Management of CVD in patients with diabetes da European Society of Cardiology (ESC), escrutinado durante esta sessão. De acordo com o palestrante, “os doentes com diabetes têm um risco aumentado de desenvolver DCV”, tal como ilustrado pela “central figure” (figura 1 das guidelines) que representa o “Manejo da DCV em doentes com diabetes tipo 2: abordagem clínica e principais recomendações”. A presença desta figura no documento justifica-se pelo facto de “a presença de DCV e diabetes num determinado doente ter, por um lado, impacto no prognóstico, mas também na estratégia de tratamento”. Por outro lado, “doentes com diabetes tipo 2 (e tipo 1) têm risco aumentado de desenvolver doença renal crónica (DRC) e esta também impacta o prognóstico da própria DRC, enquanto fator de risco de desenvolvimento de DCV”. Por tudo isto, como dito por Nikolaus Marx, “dado o elevado número de casos de diabetes não detetados em doentes com DCV, recomenda-se que todos estes sejam rastreados quanto à presença de diabetes, utilizando glicemia de jejum e/ou hemoglobina glicada A1c (Hb1AC)”. Ou seja, “ferramentas fáceis de utilizar pelos cardiologistas na deteção da diabetes”, disse, referindo-se a esta recomendação de classe I, nível de evidência A. “E vice-versa, doentes com diabetes precisam de ser avaliados para a presença de DCV e de DRC, sendo recomendada a avaliação da história clínica e da presença de sintomas sugestivos de DCV aterosclerótica em doentes com diabetes (I,B)”, afirmou, continuando: “É ainda recomendado um levantamento sistemático de sintomas e/ou sinais de insuficiência cardíaca (IC) a cada visita médica em todos os doentes diabetes (I,C). E recomenda-se igualmente que os doentes sejam rastreados de forma rotineira para a presença de DRC através da avaliação da taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) e razão albumina/creatinina urinária (UACR)” (I,B). Na “segunda parte” da “central figure” descrita por Nikolaus Marx, a Task Force sugere algumas estratégias de tratamento baseadas em evidência e, de uma forma geral, foi introduzido um novo conceito: “Recomenda-se dar prioridade à utilização de fármacos hipoglicemiantes com benefícios cardiovasculares (CV) comprovados, seguidos de fármacos com segurança CV comprovada, em detrimento de fármacos sem benefício CV comprovado ou segurança CV comprovada. E, além disso, recomenda-se mudar o tratamento hipoglicemiante de fármacos sem benefício CV comprovado ou segurança comprovada para fármacos com benefício CV comprovado”. Depois desta breve introdução, o orador deu a conhecer o restante programa da sessão de apresentação das novas recomendações, dividido “por aspetos específicos relacionados com a estratificação de risco e terapêutica baseada em evidência”, alertando para o facto de haver outros aspetos revistos nas guidelines, mas que “não seriam ali discutidos”, tais como, “estilo de vida, alvos glicémicos, manejo da pressão arterial e dos lípidos, e abordagem multifatorial a fatores de risco no manejo da diabetes”. “SCORE2-Diabetes: cardiovascular risk assessment in patients with type 2 diabetes” Coube a Emanuele Di Angelantonio, da Universidade de Cambridge, apresentar o modelo de previsão SCORE2-Diabetes2, “calibrado para prever o risco de DCV em regiões da Europa com risco baixo, moderado, elevado e muito elevado” e que está “alinhado com o SCORE2”, para pessoas sem diabetes, “separando scores de risco para homens e mulheres com diabetes tipo 2”. “Em doentes com diabetes tipo 2 sem DCV aterosclerótica sintomática ou lesão de órgão alvo grave [TFGe 300 mg/g; estádio A3), ou presença de doença microvascular em pelo menos três localizções diferentes, p.e., microalbuminúria (estádio A2) + retinopatia + neuropatia], recomenda-se estimar o risco de DCV em 10 anos através do SCORE2-Diabetes”, declarou Emanuele Di Angelantonio, mostrando ainda: SCORE2-Diabetes ≥20%: risco muito elevado; SCORE2-Diabetes 10% a <20%: risco elevado; SCORE2-Diabetes 5% a <10%: risco moderado; SCORE2-Diabetes <5%: baixo risco. “Reduction of arteriosclerotic cardiovascular disease risk by glucose-lowering medications in diabetes” Este foi o tópico abordado por Darren McGuire, de UT Southwestern, Dallas, EUA, que começou por dar a conhecer as alterações de conceitos (comparativamente às guidelines de 2019) no que a este aspeto diz respeito: Com base em várias metanálises, incluindo dados de CVOT com inibidores SGLT2 e agonistas dos recetores GLP-1, as atuais guidelines dão recomendações respetivas para doentes com e sem DCV aterosclerótica/lesão de órgão-alvo grave; É dada especial atenção ao aspeto do benefício CV comprovado e/ou segurança dos fármacos hipoglicemiantes. De seguida, o palestrante expôs a figura 8 do novo documento, referente ao “Tratamento hipoglicemiante para doentes com diabetes tipo 2 e DCV aterosclerótica para reduzir o risco CV”, salientando o facto de “o topo ser completamente independente das considerações acerca da glucose”, ou seja, da HbA1c ou da concomitância de medicação para redução de glucose. “Uma das principais mudanças nas atuais guidelines é que removemos destas duas recomendações [agonistas dos recetores GLP-1, inibidores SGLT2] os termos ‘e/ou’, bem como ‘ou um ou outro’. Quisemos, de facto, recomendar ambas as opções terapêuticas para serem usadas de forma simultânea em doentes elegíveis para estas terapêuticas com base em indicações clínicas, sem contraindicações ou intolerâncias”, notificou, apresentando alguma da mais recente evidência de CVOT que justifica as seguintes recomendações: Inibidores SGLT2 com benefício CV comprovado são recomendados em doentes com diabetes tipo 2 e DCV aterosclerótica para redução de eventos CV, independente da HbA1c basal ou alvo e independente de medicação concomitante para reduzir a glucose (I,A); Agonistas dos recetores GLP-1 com benefício CV comprovado são recomendados em doentes com diabetes tipo 2 e DCV aterosclerótica para redução de eventos CV, independente da HbA1c basal ou alvo e independente de medicação concomitante para reduzir a glucose (I,A). Relativamente a outros fármacos “para controlo adicional da glucose”, o Dr. Darren McGuire mostrou que a segunda metade do algoritmo terapêutico – isto é, figura 8 das guidelines – refere a metformina e a pioglitazona pelos “benefícios CV sugeridos” (ainda que a última tenha algumas “ponderações especiais”), tendo o especialista apresentado alguma da evidência “responsável” pela consideração de ambos os fármacos. No documento pode ler-se que: Se for necessário controlo adicional da glucose, a metformina deve ser considerada em doentes com diabetes tipo 2 e DCV aterosclerótica (IIa,C); Se for necessário controlo adicional da glucose, a pioglitazona pode ser considerada em doentes com diabetes tipo 2 e DCV aterosclerótica sem insuficiência cardíaca (IIb,B). Por fim, Darren McGuire falou sobre outros fármacos de diferentes classes terapêuticas com “segurança CV comprovada” (mencionados na parte de baixo do algoritmo), tais como os inibidores dDPP-4, a ertugliflozina ou as sulfonilureias, e, à semelhança do Prof. Doutor Emanuele Di Angelantonio, mostrou o esquema referente ao risco CV dos doentes com DCV aterosclerótica ou lesão de órgão-alvo grave, de acordo com o SCORE2-Diabetes, para salientar as seguintes recomendações (ilustradas na figura 7 do documento): Em doentes com diabetes tipo 2 sem DCV aterosclerótica ou lesão de órgão-alvo grave, mas com um risco calculado de DCV em 10 anos ≥10%, o tratamento com um inibidor SGLT2 ou agonista dos recetores GLP-1 pode ser considerado para reduzir o risco CV (IIb,C); Em doentes com diabetes tipo 2 sem DCV aterosclerótica ou lesão de órgão-alvo grave de risco baixo ou moderado, o tratamento com metformina deve ser considerado para reduzir o risco CV (IIa,C); Em doentes com diabetes tipo 2 sem DCV aterosclerótica ou lesão de órgão-alvo grave de risco elevado ou muito elevado, o tratamento com metformina deve ser considerado para reduzir o risco CV (IIb,C). “Antithrombotic therapy in diabetes” Foi a vez de Bianca Rocca, da Università Cattolica del Sacro Cuore, Roma, abordar este tópico que tem também algumas novidades, entre as quais: Em adultos com diabetes tipo 2 sem história de DCV aterosclerótica sintomática ou revascularização, o ácido acetilsalicílico (75–100 mg o.d.) pode ser considerado para prevenir o primeiro evento vascular grave, na ausência de sinais claros de contraindicações – elevado risco de hemorragia devido a hemorragia gastrointestinal ou úlcera péptica nos últimos 6 meses, doença hepática ativa (como cirrose, hepatite ativa) ou história de alergia ao ácido acetilsalicílico (IIB,A); Em doentes com diabetes e doença arterial dos membros inferiores sintomática, a terapêutica antiplaquetária é recomendada (I,A); Em doentes com FA e sob terapêutica antiplaquetária, elegível para anticoagulação e sem contraindicação, os NOAC são recomendados em detrimento a um antagonista da vitamina K (I,A); Em doentes com síndrome coronária aguda ou crónica e diabetes submetidos a implante de stent coronário e tendo indicação de anticoagulação, a terapêutica tripla com ácido acetilsalicílico em dose baixa, clopidogrel e um NOAC é recomendada por pelo menos uma semana, seguida de terapêutica dupla com um NOAC e um único antiplaquetário oral (I,A). “Heart failure and diabetes” O penúltimo tema foi apresentado pela Katharina Schütt, Universitätsklinikum Aachen, Alemanha, que abordou as recomendações para o “screening e diagnóstico de insuficiência cardíaca (IC) em pessoas com diabetes”, bem como o tratamento preconizado nestes doentes (com fração de ejeção reduzida): Os inibidores SGLT2 (dapagliflozina, empagliflozina ou sotagliflozina) são recomendados em todos os doentes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFEr) e diabetes tipo 2 para reduzir o risco de hospitalização por IC e morte CV (I,A); Sacubitril/valsartan ou um IECA são recomendados em todos os doentes com ICFEr e diabetes para reduzir o risco de hospitalização por IC e morte (I,A); Betabloqueadores são recomendados em doentes com ICFEr e diabetes para reduzir o risco de hospitalização por IC e morte (I,A); Antagonistas dos recetores mineralocorticoides (ARM) são recomendados em doentes com ICFEr e diabetes para reduzir o risco de hospitalização por IC e morte (I,A); Uma estratégia intensiva de início precoce de terapêutica baseada em evidência (inibidores SGLT2, ARNI/IECA, betabloqueadores e ARM), com titulação rápida para doses-alvo definidas em ensaios clínicos, começando antes da alta e com visitas de follow-up frequentes nas primeiras 6 semanas após hospitalização por IC é recomendado para reduzir readmissões ou mortalidade (I,B). A palestrante também mencionou os estudos EMPEROR-Preserved e DELIVER, que levaram à seguinte recomendação: Empagliflozina ou dapagliflozina são recomendadas em doentes com diabetes e fração de ejeção ventricular esquerda >40% para reduzir o risco de hospitalização por IC ou morte CV (I,A). “Chronic kidney disease and diabetes” Este foi, então, o último ponto a ser apresentado, neste caso pelo Dr. Will Herrington (Universidade de Oxford) que, no que respeita à terapêutica, assinalou: Recomenda-se a redução intensiva do c-LDL com estatinas ou uma combinação de estatina/ezetimiba (I,A); Um inibidor SGLT2 (canagliflozina, empagliflozina ou dapagliflozina) é recomendado em doentes com diabetes tipo 2 e DRC com TFGe ≥20 mL/min/1,73 m2 para reduzir o risco de DCV e insuficiência renal (I,A); A finerenona é recomendada em adição a um IECA ou ARA em doentes com diabetes tipo 2 e TFGe >60 mL/min/1,73 m2 com UACR ≥30 mg/mmol (≥300 mg/g), ou TFGe 25–60 mL/min/1,73 m2 e UACR ≥3 mg/mmol (≥30 mg/g) para reduzir eventos CV e insuficiência renal (I,A). Para terminar, o Dr. Will Herrington mostrou uma última recomendação introduzida nestas novas guidelines: O aconselhamento de um nefrologista pode ser considerado para o manejo de um aumento de fosfato sérico, outras evidências de distúrbios do metabolismo mineral e ósseo da doença renal crónica e anemia renal (IIb,C). Referências: 1 – Marx N, et al. 2023 ESC Guidelines for the management of cardiovascular disease in patients with diabetes. Eur Heart J. 2023. doi:10.1093/eurheartj/ehad192; 2 – SCORE2-Diabetes Working Group and the ESC Cardiovascular Risk Collaboration. SCORE2-Diabetes: 10-year cardiovascular risk estimation in type 2 diabetes in Europe. Eur Heart J. 2023 Jul 21;44(28):2544-2556. doi: 10.1093/eurheartj/ehad260.

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