Iniquidades e ineficiências regionais no acesso a cuidados de saúde em Portugal
DATA
30/09/2014 17:59:57
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Jornal Médico
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Iniquidades e ineficiências regionais no acesso a cuidados de saúde em Portugal

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Quem reside em Avis ou em Arronches (Alto Alentejo) tem uma probabilidade sete vezes maior de ser submetido a uma cirurgia de substituição total do joelho, do que quem mora na Lousã ou em Oliveira do Hospital (Pinhal Interior Norte).

Já quando se compara a taxa média das próteses de substituição total do joelho em Portugal (74 por 100 mil habitantes) com a verificada noutros países como Austrália, Suíça, Finlândia, Canadá, os números são muito menos favoráveis para o nosso país. E se o comparador for a Austrália, país que regista a taxa mais elevada, a diferença é de 74 para 257 por 100 mil habitantes. Pesem as diferenças, importa dizer que as iniquidades que se registam entre regiões são um problema comum a muitos países avaliados. De facto, tal como acontece em Portugal, também no Canadá, em Espanha ou em Israel, as variações internas nas taxas de substituição total do joelho registam diferenças de até cinco vezes.

A conclusão é de um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) que teve como objectivo identificar variações geográficas na prestação de cuidados de saúde num conjunto de países-membros da organização.

O documento inclui um capítulo dedicado a Portugal, realizado por uma equipa de investigadores da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), composta por Céu Mateus, Carla Nunes, Paulo Boto e Inês Joaquim.

A par das “más noticias”, o estudo também apresenta alguns indicadores de evolução positivos. É o que acontece relativamente ao cateterismo cardíaco e à angioplastia no tratamento da cardiopatia isquémica, uma das principais causas de mortalidade em Portugal. Neste indicador, foi possível concluir que o aumento global de angioplastias transluminais percutâneas coronárias (PTCA) traduz uma evolução positiva na adopção de boas práticas clínicas.

O relatório intitulado “Variações Geográficas nos Cuidados de Saúde – O que sabemos e o que pode ser feito para melhorar o desempenho do sistema de saúde?”, suscita algumas questões sobre a eficiência e a equidade na prestação de cuidados de saúde.

Desde logo, que a grande variação das taxas de actividade de cuidados de saúde (oferta de cuidados) é “motivo de preocupação”, uma vez que se traduz no facto de o acesso a um tratamento específico depender, em grande medida, da região onde se mora.

Em Portugal, o número de procedimentos cardíacos, intervenções ao joelho e histerectomias é, pelo menos, duas vezes mais elevado nas regiões onde há maior oferta de cuidados de saúde, quando comparadas com localidades com menor actividade. As variações apresentadas no relatório sugerem que, ou estão a ser prestados cuidados de saúde desnecessários nas localidades onde existe maior oferta, ou há necessidades não satisfeitas nas regiões com menor actividade.

No relatório, lê-se ainda que, a par das necessidades e preferências do doente, o status socioeconómico e a prática médica, são factores que influenciam as taxas de cirurgia de substituição total do joelho.

Como exemplo de boas-práticas, são referidas as recomendações existentes em Portugal para reduzir o número de cesarianas desnecessárias, através da disponibilização de orientações, auditorias, campanhas de comunicação dirigidas à população, implementação de registos, entre outras.

No relatório, os especialistas apontam algumas medidas que consideram ser promotoras da prestação de cuidados de saúde mais adequados, como a publicação de dados sobre os procedimentos mais caros ou de maior volume, maior segmentação dos públicos-alvo em campanhas de sensibilização e maior envolvimento dos doentes através da decisão partilhada sobre o processo de tratamento e medição dos resultados em saúde após intervenções cirúrgicas.

No relatório da OCDE, as taxas de utilização foram padronizadas por idade e sexo de modo a remover o efeito das diferenças registadas ao nível das estruturas populacionais. O relatório considera as possíveis causas das variações registadas a nível regional e explora políticas de saúde que permitam reduzir variações injustificadas, como as provocadas pelo excesso de oferta.

Os procedimentos cardíacos são os actos médicos que registam as taxas mais elevadas de variação geográfica. Variam mais de três vezes entre os países analisados e também apresentam as maiores variações internas em mais de metade destes. As taxas de variação regional interna são particularmente elevadas para bypass coronário em Espanha e Portugal.

O recurso à cirurgia de revascularização coronária (CABG) tem vindo a diminuir na maioria das regiões portuguesas, sendo substituída pela angioplastia coronária e por outros procedimentos menos invasivos. Pese a tendência, a verdade é que as taxas de CABG têm aumentado em algumas regiões, como o Baixo Alentejo, Península de Setúbal, Alentejo Litoral e do Ave. Um facto que, apontam os investigadores da ENSP, poderá, eventualmente, apontar para uma possível sobreutilização de CABG em algumas regiões, reflexo de uma concentração crescente da cirurgia de revascularização coronária em determinadas regiões e hospitais do país.

No que respeita à angioplastia coronária, a taxa média não ponderada entre as regiões quase triplicou entre 2002 e 2009. Se combinarmos este dado com o facto de o coeficiente de variação ter diminuído substancialmente no mesmo período, verifica-se que a taxa de crescimento foi particularmente forte nas regiões que registaram taxas relativamente baixas em 2002, apontando para uma convergência no recurso à angioplastia coronária entre regiões. A taxa de crescimento da angioplastia coronária foi mais vincada nas regiões da Beira Interior Norte, Douro, Baixo Alentejo, Alto Trás-os-Montes e Baixo Vouga.

O aumento do recurso à angioplastia coronária foi acompanhado, como seria de esperar, por um aumento muito semelhante do recurso ao estudo hemodinâmico. A taxa média não ponderada de cateterização cardíaca mais do que duplicou entre 2002 e 2009, ao mesmo tempo que se registou um decréscimo do coeficiente de variação, indicando um acesso mais uniforme para este importante meio de diagnóstico. A região da Grande Lisboa foi uma excepção ao aumento generalizado das taxas de angiografia coronária: a taxa na região foi uma das mais elevadas em 2002, mas não aumentou muito nos anos seguintes, levando a que apresentasse um dos menores índices em 2009, muito baixo da média nacional.

Céu Mateus aborda com alguma cautela esta prestação: “importa dizer que apenas analisámos dados dos hospitais do SNS. Se em Lisboa tiver havido um aumento da oferta hemodinâmica no sector privado é natural que se observe esta redução no sector público, sem que tal signifique que tenha havido um decréscimo da prestação total”, salvaguarda a professora da Escola Nacional de Saúde Pública.

As variações regionais das taxas de histerectomia são relativamente elevadas, num contexto de recurso decrescente a este tipo de intervenção. A prevalência de histerectomia é 75% maior no Canadá e na Alemanha (acima de 350 por 100 mil mulheres) do que em Israel, Espanha, Portugal ou na República Checa. A maioria dos países registam variações internas entre duas e três vezes. No Canadá e na República Checa as variações internas nas taxas neste procedimento registam diferenças de até cerca de quatro vezes.

As taxas de internamento hospitalar são duas vezes maiores em Israel, na Alemanha ou na Austrália (cerca de 12 mil por 100 mil habitantes) do que no Canadá.

Já as taxas de variação interna, não obstante sejam menores neste parâmetro do que as registadas nos demais avaliados pela OCDE, o Canadá, a Austrália, a Finlândia e a Inglaterra exibem os níveis mais elevados de variação interna (2,4 a 3,6 vezes), em boa medida devido às respectivas regiões periféricas, marcadas por uma deficiente acessibilidade.

Em 2009, a Cova da Beira foi a região onde se registou a maior taxa de internamento hospitalar (padronizada por idade e sexo), não obstante se ter assistido a uma redução de cerca de 10% no número de internamentos entre 2002 e 2009. Seguem-se as regiões de Alto Trás-os-Montes e Pinhal Litoral, todas com taxas de internamento pelo menos 50% mais elevadas do que as registadas nas regiões de Entre Douro e Vouga e do Baixo Alentejo. Em geral, as regiões rurais do interior nordeste do país tendem a registar taxas de internamento médico hospitalar mais elevadas do que as regiões urbanas/costeiras.

As taxas de recurso a cesariana são até 50% mais elevadas em Itália, Portugal, Austrália, Suíça e Alemanha (acima de 300 por mil nados-vivos) do que na Finlândia.

No que toca a variações internas, o relatório da OCDE informa que estas são relativamente baixas nos países avaliados, excepto em Itália, onde se registam variações entre regiões de até seis vezes.

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Editorial | Luís Monteiro, membro da Direção Nacional da APMGF
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