Realizou-se no passado dia 18 a 2ª Reunião de Sócios da Associação Portuguesa para o Estudo Clínico da Sida (APECS). Um encontro que para além da agenda de índole associativa, propriamente dita, integrou um programa científico de onde se destacou a comunicação de Ana Cláudia Miranda, especialista do Serviço de Infecciologia do Hospital de Egas Moniz, em Lisboa subordinada ao tema: “Tratamento – sim ou não? Argumentos a favor, argumentos contra, cura funcional – realidade ou miragem? Como tratar? Parar ou não o tratamento, quando? À conversa com o nosso jornal, a infecciologista deu conta do estado da arte do tratamento da infecção pelo VIH e sobre as verdades e mitos que amiúde vão surgindo sobre os avanços e recuos rumo à cura-funcional da infecção.
A sua comunicação na 2ª reunião de sócios da Associação Portuguesa para o Estudo Clínica da SIDA foi, de algum modo, provocadora… Falou em tratar, ou não… Em cura funcional… Em que ponto estamos ao nível da leges artis da intervenção terapêutica?
O patamar de eficácia da terapêutica anti-retrovírica alcançado permite-nos desbravar algum conhecimento. Hoje temos a possibilidade de escolher esquemas terapêuticos muito mais bem tolerados e com toxicidade a curto/médio prazo menos marcada bem como posologias mais “simpáticas” e fáceis de adaptar à vida do doente. Vantagens que no entanto não eliminam o facto de se tratar uma terapêutica crónica, com elevados custos associados. Que mesmo menos agressiva do que no passado, implica algum compromisso da qualidade de vida do doente, já que exige o cumprimento de um plano terapêutico estrito e por tempo indefinido.
Inovação que permitiu um melhor conhecimento da doença… Levando à discussão do “quando começar” a terapêutica.
O que ganhámos ultimamente e que veio despoletar a questão do tratamento na fase aguda foi um conhecimento mais detalhado da imunopatogénese da infecção; do efeito da replicação vírica no contexto da infecção aguda e do seu impacto na depleção do sistema imunitário numa fase muito inicial da doença bem como, naturalmente, nas implicações prognósticas que se lhe associam.
Existe hoje evidência sólida de que é benéfico iniciar a terapêutica numa fase muito inicial da infecção. Como também sabemos que essa “fase inicial” é uma “janela de oportunidade” muito estreita.
O grande benefício da introdução de terapêutica em termos de ganhos imunológicos é minimizar a depleção marcada que ocorre na infecção aguda, particularmente ao nível da mucosa intestinal. Ora, este benefício é mais marcado se acontecer antes do estabelecimento dos “reservatórios”, que se estima acontecer entre as três e as quatro primeiras semanas de infecção. Em média a pessoa infectada desenvolve sintomas na 2ª ou 3ª semana após a infecção, pelo que é fácil perceber que a “janela” de intervenção é demasiado estreita.
E no contexto da infecção aguda? Quando se deve iniciar terapêutica?
A evidência demonstra que existem várias vantagens em iniciar terapêutica o mais cedo possível. Esta permitirá o controlo sintomático, eliminação ou redução da replicação vírica e do potencial de instalação de reservatórios; recuperação imunológica mais sustentada, atingindo valores ditos “normais” de linfócitos TCD4+, com menor probabilidade de progressão da doença e melhor prognóstico. E adicionalmente, e não menos importante, a diminuição do risco de transmissão que, como se sabe, acontece predominantemente em fases de replicação viral muito elevadas como sucede no contexto da infecção aguda. Agora, o difícil não é tanto a decisão de iniciar terapêutica, mas a possibilidade de efectuar o diagnóstico durante a fase aguda da infecção por VIH.
Iniciar terapêutica apenas na fase sintomática… É opção?
A revisão da literatura vai tão longe quanto ponderar que iniciar terapêutica na fase sintomática da infecção aguda pode ser tardio, tendo em conta o estabelecimento dos reservatórios. E aqui importa distinguir conceitos: infecção aguda reporta aos primeiros 30 dias infecção; infecção primária às primeiras 12 semanas; infecção recente ao período dos seis primeiros meses.
Agora, é consensual que a intervenção nos primeiros trinta dias é a que permite uma maior rentabilidade e impacto na imunopatogénese da infecção, com redução do dano inicial.
Passados os seis meses… O que fazer?
Continuamos numa “zona cinzenta”, agora já com infecção estabelecida, crónica, para a qual existem orientações terapêuticas bem definidas (TCD4+< 500 células/mm3; carga vírica> 100.000 cópias/ml, entre outras situações clínicas bem definidas).
Interromper a terapêutica. É uma possibilidade que ainda se coloca?
Ao longo dos anos foram sendo avaliadas algumas estratégias, entre as quais as interrupções estruturadas da terapêutica, que foram digamos, “arrumadas”, após conhecidos os resultados do estudo SMART (2002-2006), que revelaram que a interrupção “controlada” acrescentava um aumento significativo do risco cardiovascular e de imunoactivação por inflamação crónica associada ao VIH. Ou seja, essa é uma estratégia que já sabemos que não funciona e não é recomendada. Hoje em dia, o que as orientações terapêuticas nos recomendam no contexto da infecção aguda ou recente é que uma vez iniciada terapêutica esta seja mantida por tempo indefinido.
Cura-funcional… Realidade ou miragem?
Neste momento decorrem estudos de interrupção terapêutica que têm como objectivo avaliar a possibilidade de obtenção de cura-funcional (remissão e controlo da replicação virológica). Estas são estratégias aplicadas em contexto de infecção aguda/recente e em populações de doentes seleccionadas. Até à data, e num cenário muito particular, o único caso de sucesso é o do denominado “Paciente de Berlim”.
Uma cura que resultou da conjugação de inúmeros factores… “Improváveis”.
A questão da cura-funcional remete-nos de imediato para a complexidade desta infecção e da imunopatogénese associada, que ainda não dominamos completamente. As hipóteses em estudo relativamente à chamada “cura-funcional” passam pela actuação muito precoce, pela redução da instalação de reservatórios e por estratégias de estimulação da resposta imunológica (quer por engenharia genética quer através do recurso a outras metodologias).
O “Paciente de Berlim” foi um acaso – feliz – de cura-funcional ocorrida em circunstâncias muito especiais e para a qual contribuíram um conjunto de medidas terapêuticas sequenciais e não reproduzíveis de forma generalizada. Sucintamente… O doente desenvolveu uma leucemia aguda e foi submetido a um primeiro transplante de medula e a um segundo um ano depois, por recidiva da doença hematológica. Por “acaso” teve a felicidade de ser transplantado com a medula de um dador que tinha uma mutação genética rara, designada por deleção delta-32 para o co-receptor do CCR5 (o VIH utiliza o CCR5 para entrar nas células), o que lhe conferiu resistência à infecção pelo VIH.
Em que ponto estamos?
Estamos a viver uma nova era na abordagem da doença. Atingimos o patamar da eficácia e da segurança da terapêutica anti-retrovírica. A doença é hoje uma doença crónica, controlável. Chegados aqui, começam-se a abrir novas janelas através das quais se procuram perspectivar caminhos rumo à cura e à erradicação total do vírus. Existem várias “vias” de investigação em curso e estou optimista quanto à possibilidade de se conseguir vir a dar esse “passo”.
Enquanto isso não acontece, importa investir na prevenção e na intervenção precoce, que passa, necessariamente, por um diagnóstico também cada vez mais precoce.
Estamos melhor… Ou pior do que há alguns anos atrás?
A infecção não regista um declínio evidente. Em alguns grupos populacionais continuamos a assistir a um acréscimo do número de casos. É preciso falar de terapêutica, de cura… Mas também e sempre de prevenção, o que nem sempre tem acontecido com a ênfase que a situação necessita.
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Qual é a relação entre medicina e arte? Serão universos totalmente distintos? Poderá uma obra de arte ter um efeito “terapêutico”?