Jornal Médico - RSV - Imunizar para prevenir: o retrato de uma experiência portuguesa

O 51.º Congresso Português de Neonatologia acolheu um simpósio, patrocinado pela Sanofi, dedicado às infeções pelo vírus sincicial respiratório (RSV). Sob a moderação do pediatra João Farela Neves, do Hospital D. Estefânia, a sessão contou com as intervenções da pediatra Ana Brett, do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), e da pediatra Edite Costa, Coordenadora da Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais e Pediátricos (UCINP) do Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (SESARAM). Em foco esteve a problemática da infeção por RSV em crianças, que, por vezes, resulta em hospitalizações e pode culminar em ventilações invasivas. A respeito da profilaxia, foram apresentados os dados de eficácia e segurança do novo anticorpo monoclonal, bem como a experiência-piloto da sua utilização na Região Autónoma da Madeira, que, à data do simpósio, procedeu à imunização de 955 crianças com menos de 8 meses de idade. Estratégias preventivas contra o RSV e desenvolvimento clínico de nirsevimab O vírus sincicial respiratório (RSV) é a causa mais comum de infeção respiratória baixa (IRB) aguda em crianças, especialmente no primeiro ano de vida. “Nove em cada dez crianças até aos 2 anos acabam por contrair este vírus, que é a principal causa de hospitalização em crianças com menos de 12 meses”, introduziu a oradora Ana Brett. A gravidade da infeção por RSV é imprevisível e pode variar entre manifestações clínicas ligeiras até doença respiratória grave. Ainda que seja relevante a prevenção desta infeção, “somente 4-6% das crianças são elegíveis para a prevenção contra o RSV. Contrair infeção por RSV precocemente implica maior risco futuro de pieira recorrente e de asma”, salientou a pediatra. Em termos de carga da doença, e reportando-se a uma análise sistemática de estimativa do impacto global da infeção por RSV em 2019, em crianças com idade inferior a 5 anos, a especialista Ana Brett referiu que, “a nível mundial, estimaram-se 33 milhões de IRB, das quais 3,6 milhões foram hospitalizadas, registando-se 26 300 mortes”. Em crianças com idade inferior a 6 meses, “6,6 milhões apresentaram IRB, das quais 1,4 milhões foram hospitalizadas, verificando-se 13 300 mortes”1. Em resumo, “a doença tem grande impacto nos lactentes”, sublinhou Ana Brett. Em seguida, a pediatra mostrou os dados de um estudo português2 relativamente à avaliação de hospitalizações potencialmente relacionadas com RSV. Os resultados mostraram que, em crianças menores de 5 anos de idade, de 2015 a 2018, nas épocas de RSV (novembro a março), ocorreram 7 423 hospitalizações por RSV, das quais 95% eram crianças saudáveis, 85% das crianças tinham menos de 12 meses e 67% menos de 6 meses. “Entre as crianças internadas, 72% foram consideradas situações clínicas graves”, que necessitaram de oxigenoterapia suplementar, de ventilação não invasiva, ou de ventilação mecânica invasiva. “A mediana do tempo de internamento foi de 5 dias”, salientou a oradora. Estratégias preventivas contra o RSV Conforme explanado e comentado pela pediatra do CHUC, atualmente as estratégias de imunização para todas as crianças contra o RSV no primeiro ano de vida podem ser sintetizadas nos seguintes pontos: Imunização materna em que ocorre a transferência transplacentária da mãe para o feto. “Sabemos que tem sido eficaz contra outros patogénios (vírus influenza, Bordetella pertussis), pelo que poderá ser uma estratégia eficaz para as crianças no primeiro ano de vida” considerou a palestrante; Imunização de lactentes com a vacinação. Esta imunização “é ineficaz em lactentes com menos de 6 meses”. Contudo, poderá ser útil em crianças na sua segunda ou terceira época de circulação sazonal do RSV; Imunização de lactentes com anticorpos monoclonais de curta duração, nomeadamente o palivizumab. Este anticorpo só se encontra aprovado para prematuros abaixo das 29 semanas ou em lactentes com comorbilidades específicas, designadamente com cardiopatias congénitas. A imunização implica injeções mensais e “esta estratégia não é útil para todas as crianças”, apontou Ana Brett. Imunização de lactentes com anticorpos monoclonais de longa duração, com uma duração de 5 meses “e que protegem os lactentes durante toda a época de RSV, pelo que será uma boa estratégia preventiva”, destacou a pediatra. As duas abordagens mais comuns são a imunização com um anticorpo monoclonal em lactentes, pré ou durante a época de circulação do RSV – de modo a garantir a proteção durante toda a época de RSV; versus a vacinação materna, que leva à transferência, através da placenta, de anticorpos para o feto, resultando na sua proteção. A administração do anticorpo monoclonal deve ser realizada em dose única, desde o nascimento em crianças que nascem durante a época RSV ou antes do início da época para crianças que nascem nos meses fora da época RSV. Nas grávidas, a vacinação deve ocorrer entre as 24 e as 36 semanas, também em dose única. Ambas as estratégias conferem uma proteção de, pelo menos, 5-6 meses após a administração. Nirsevimab O nirsevimab é um anticorpo monoclonal de longa duração, desenhado para a prevenção da doença por RSV. Este anticorpo liga-se à proteína pré-fusão F, o que resulta no bloqueio da entrada do vírus na célula, originando a sua neutralização. Fornece uma proteção direta na primeira época de RSV (pelo menos 5 meses) em crianças saudáveis ou com condições subjacentes, de termo e/ou pré-termo. Estudos clínicos de avaliação de nirsevimab MELODY3 Este estudo de fase 3 avaliou a utilização de nirsevimab, em comparação com placebo (2:1), em lactentes com mais de 35 semanas na primeira época de RSV. Incluiu 31 países e o período de recrutamento ocorreu entre julho de 2019 e outubro de 2021. Nos resultados, nirsevimab demonstrou uma “eficácia contra IRB por RSV de 76,4%, uma eficácia de 76,8% contra hospitalizações por RSV e uma eficácia contra IRB grave por RSV de 78,6%”, assinalou Ana Brett. HARMONIE Neste estudo de fase 3b – cujo abstract (#1178) foi apresentado no congresso da European Society of Paediatric Infectious Disease (ESPID), decorrido em Lisboa, em maio de 2023 – avaliou-se a imunização com nirsevimab comparativamente com nenhuma intervenção. Foram incluídos no ensaio clínico lactentes com mais de 29 semanas (8 058 lactentes) na sua primeira época de RSV, com períodos de recrutamento entre agosto de 2022 e março de 2023. De acordo com a especialista, “os resultados demonstraram uma eficácia de 83,2% de nirsevimab na prevenção de hospitalizações por RSV, de 75,7% na prevenção de doença muito grave por RSV e uma redução de 58,0% nas hospitalizações por qualquer causa de IRB”. Em resumo, o anticorpo monoclonal nirsevimab pode ser administrado “em crianças saudáveis ou com condições de saúde subjacentes, que podem ser de termo ou pré-termo, e durante ou antes da época de RSV” indicou Ana Brett. A administração é de dose única, intramuscular e pode ser administrado concomitante com outras vacinas do programa nacional de saúde. A eficácia do nirsevimab foi demonstrada em vários estudos, com a “redução do número de casos, do número de hospitalizações e da gravidade da infeção por RSV em cerca de 75-80%”, concluiu a pediatra. Nirsevimab: da ciência à prática clínica Na segunda palestra do simpósio, a pediatra Edite Costa começou por apresentar as estatísticas e o impacto da infeção por RSV na Região Autónoma da Madeira (RAM), na época de 2022/2023. Dando a conhecer à audiência que se contabilizaram 782 episódios de urgência por IRB, na Urgência Pediátrica do Hospital Central do Funchal, dos quais 65% foram confirmados laboratorialmente com o diagnóstico de infeção por RSV. Destes episódios de infeção por RSV, 137 das hospitalizações ocorreram em crianças com idade inferior a 5 anos. Cinquenta e três internamentos ocorreram em crianças com idade inferior a 24 meses, com diagnóstico de infeção respiratória aguda. Destes 53 casos com diagnóstico de infeção respiratória aguda, em 44% destes o VSR foi identificado. Do total de episódios de infeção respiratória baixa, 48% ocorreram em crianças com idades inferiores a 3 meses, 26% em crianças com idades entre os 3 e 5 meses e 4,3% em crianças com idades entre os 12 e os 24 meses. De salientar que “9,5% dos lactentes internados nos cuidados intensivos precisaram de suporte respiratório”, referiu Edite Costa. Com estes dados recolhidos, considerou-se o nirsevimab como uma abordagem que, nas palavras da pediatra, “poderia modificar estas estatísticas”. Neste sentido, a RAM, em colaboração com as entidades responsáveis (Direção Regional de Saúde (DRS) e SESARAM) iniciaram uma imunização profilática com nirsevimab, para a prevenção da infeção por RSV, na época de 2023/2024. O esquema de imunização implementado foi de “uma administração única do anticorpo monoclonal em todos os recém-nascidos e lactentes com menos de 8 meses, no início da época epidémica, para oferecer níveis de proteção até 150 dias”, indicou a especialista. Todos os lactentes saudáveis, com idade gestacional ≥ 35 semanas e nascidos entre 1 de abril 2023 a 31 de março de 2024 serão imunizados. Nos bebés de idade gestacional menor de 35 semanas, houve algumas condicionantes clínicas que limitaram a imunização de todos os prematuros, nomeadamente o grupo de prematuros de risco ou que apresentassem comorbilidades que condicionem a inoculação da imunização. Este protocolo iniciou-se dia 1 de novembro de 2023 e foi efetuado por diferentes profissionais de saúde, que receberam formação específica relativamente ao anticorpo monoclonal nirsevimab. Adicionalmente, foram também realizadas campanhas de sensibilização e de informação da população. Em resumo, entre o período de 1/11/2023 e 19/11/2023, 955 crianças com idade abaixo dos 8 meses foram imunizadas com nirsevimab. Sendo a infeção por RSV “tão prevalente” e resultando “em números tão elevados de internamentos”, o novo anticorpo monoclonal nirsevimab apresenta-se como uma nova “estratégia de imunização universal”, com “eficácia demonstrada nos estudos” considerou a pediatra da Madeira. Em jeito de conclusão e na qualidade de moderador do simpósio, João Farela Neves afirmou que estes resultados “são claramente favoráveis, pelo que a discussão vai tender muito para a generalização da imunização”. Este conteúdo é da exclusiva responsabilidade e iniciativa editorial do Jornal Médico Referências: 1. Li Y, Wang X, Blau DM, et al. Global, regional, and national disease burden estimates of acute lower respiratory infections due to respiratory syncytial virus in children younger than 5 years in 2019: a systematic analysis. Lancet 2022;399(10340):2047–64. 2. Bandeira T, Carmo M, Lopes H, et al. Burden and severity of children’s hospitalizations by respiratory syncytial virus in Portugal, 2015-2018. Influenza Other Respir Viruses 2023;17(1):e13066. 3. Muller WJ, Madhi SA, Seoane Nuñez B, et al. Nirsevimab for Prevention of RSV in Term and Late-Preterm Infants. New England Journal of Medicine 2023;388(16):1533–4.

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